sexta-feira, janeiro 05, 2007

Parabéns Umberto Eco
- Vede, caro Roberto, o senhor de Salazar não diz que o sensato deve simular. Sugere-vos, se bem entendi, que deve aprender a dissimular. Simula-se o que não se é, dissimula-se o que se é. Se vos gabardes do que não fizestes, sois um simulador. Mas se evitardes, sem fazê-lo notar, mostrar em pleno o que fizestes, então dissimulais. É virtude acima de todas as virtudes dissimular a virtude. O senhor de Salazar está a ensinar-vos um modo prudente de ser virtuoso, ou de ser virtuoso de acordo com a prudência. Desde que o primeiro homem abriu os olhos e soube que estava nu, procurou cobrir-se até à vista do seu Fazedor: assim a diligência no esconder quase nasceu com o próprio mundo.
Dissimular é estender um véu composto de trevas honestas, do qual não se forma o falso mas sim dá algum repouso ao verdadeiro.

A rosa parece bela porque à primeira vista dissimula ser coisa tão caduca, e embora da beleza mortal costume dizer-se que não parece coisa terrena, ela não é mais do que um cadáver dissimulado pelo favor da idade. Nesta vida nem sempre se deve ser de coração aberto, e as verdades que mais nos importam dizem-se sempre até meio. A dissimulação não é uma fraude. É uma indústria de não mostrar as coisas como são. E é indústria difícil: para nela ser excelente é preciso que os outros não reconheçam a nossa excelência. Se alguém ficasse célebre pela sua capacidade de camuflar-se, como os actores, todos saberiam que ele não é o que finge ser. Mas dos excelentes dissimuladores, que existiram e existem, não se tem notícia alguma.
- E notai - acrescentou o senhor de Salazar -, que convidando a dissimular não vos convidamos a permanecer mudo como um parvo. Pelo contrário. Deveis aprender a fazer com a palavra arguta o que não podeis fazer com a palavra aberta; a mover-vos num mundo que privilegia a aparência, com todos os desembaraços da eloquência, a ser tecelão de palavras de seda. Se as flechas perfuram o corpo, as palavras podem trespassar a alma.
Umberto Eco, in 'A Ilha do Dia Antes'

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro Velho Gosma,
Esta do Umberto, chissa!
Quando propôs "volver" nunca por nunca lhe daria de barato mais de 120 graus.Agora 360!!!
O meu amigo além de saber quando todos os imortais comemoram os seus "cumpleños" ainda os evoca.
Umberto em "a ilha do dia antes" é aquilo que de belo se chama, qual Saramago, um gramatista complicado e altamente antisemântico.
Reservo-me no direito, respeitosamente, de lhe dedicar desta vez não uma música mas um ensaio. De Umberto Eco "o super homem das massas".
Se conseguir ler as primeiras 15 páginas, siga. Se não, voltemos a Troia.
Um abraço respeitoso, que a hora é de evocação.

Carlos

Velho Gosma disse...

Eu tinha proposto o "volver" de uma forma prosaica, não era minha intenção utilizar qualquer compasso.
Meu bom velho, eu não sei, obviamente, a datea de nascimento de todos os imortais, sei de alguns. Sempre ajuda nos jogos de Setembro
Uma vez mais aceito com muito gosto a sua dedicatória, e folgo muito em ver que temos gostos semelhantes. Lembra-me a minha, já longínqua, meninice com o meu imaginário repleto pelos heróis que Eco vai recorrendo neste seu ensaio. Bond, Tarzan, Monte Cristo, Lupin, et cetera.
Eu penso que Tróia será a nossa Ítaca, a ela voltaremos sempre, até porque o Alfa do livro que me dedicou é a obra de Eugène Sue, Os Mistérios de Paris. Sempre estas cinco inquietantes letras, plenas de delírio e desassossego a povoarem-nos os diálogos e as nossas inquietudes.
Antes de me despedir deixo uma sugestão musical, Lobo Hombre en Paris.
Um abraço forte.