sábado, dezembro 09, 2006

Um timbre de guitarra

Canta. E em que haverá mais verdade do que em cantar? Para o que nos alegra ou nos doí. Porque é decerto a forma mais profunda de sermos em exterior o que somos em interior. Que é Coimbra hoje para mim, à distância de onde a vejo? Porque não se vê o que se vê quando se vê, mas só quando se deixa de ver. Mesmo às vezes quando simplesmente se fecham os olhos.
Com os olhos abertos o real é a confusão do que não sebemos ainda se tem algum significado, E é porque só se vê o que se deixa ver, que a magia da cidade só nasce, para quem nela viveu, depois da cidade lhe ter morrido. Coimbra, como um dia escrevi, só no ressoar do seu nome tem já um timbre de guitarra. E é daí que se me levanta a terrível evocação do passado, que nunca pôde existir. Passado legendário, Coimbra existe aí, nessa legenda, na sagração da eternidade do seu efémero que passou.
...
É uma memória que para o caso de Coimbra, alguns tenderão a determinar como razão que a fixe ou legitime ou justifique, no halo de uma boémia, sei lá m,esmo de uma arruaça, na tristeza indistinta de uma tarde de domingo, numa aula a uma hora de chuva ou de calor, num encontro enamorado e clandestino com uma amada qua não vimos nunca mais e não podemos imaginar envelhecida como nós, numa hora contemplativa de verão para o rio, desde o pátio da universidade, ou numa serenata a horas mortas, tão estúpida e tão doce. Coimbra desdobra o seu leque de possibilidades de evocação, a todos os que o desejem, numa quebra muitas vezes inesperada de uma serena melancolia.
...
Coimbra foi para mim a procura díficil de um futuro em que pudesse existir. Mas ela é agora o repouso desse existir. O futuro esgotou-se, é bom que eu o saiba uma vez ou outra para repousar. Como na nossa língua nós recortamos a nossa pessoa nos limites de um vocabulário que a exprima, Coimbra é para a evocação de quem a viveu a fracção que dela nos coube ou escolhemos no fundo do nosso ser. Boémia, pois. Brigas mesmo, talvez. Ou o riso que nos recubra agora o riso que já não temos. Talvez mesmo o nosso ingénuo brilhantismo escolar que o tempo embaciou por não haver já razão para ser brilhante. Por mim, o que me ficou na memória obstinada que perdorará talvez até à morte - e que fazer? - foi a dolência de uma guitarra ao tamanho de todo o céu. E ao ressoar de um acorde, toda a cidade se me abre no sem-fim do tempo e indistinta me acena desde a sua eternidade efémera e vã. Aí a sou. E a juventude que me coube e falhou, ilumina-se da beleza e serenidade e plenitude que não teve. E tudo é assim perfeito como se o fosse. Ou tivesse sido.

Vergílio Ferreira

2 comentários:

Anónimo disse...

Vocês ã registaram a patente, agora chupem!

http://www.comissao-cona.web.pt/

Anónimo disse...

Isso é mais no hemisfério sul...
Coisa de "bosteros"